“Eramos 22 pessoas sobre um bote de borracha... Fomos parados pela Guarda costeira grega. Amarraram o nosso bote de borracha na lancha de patrulha e nos arrastaram para a costa turca. Depois apreenderam o combustível e nos abandonaram no meio do mar. O tempo piorou e as ondas cresceram. A embarcação começou a balançar. Foi em 16 de maio, às duas da madrugada. As pessoas a bordo começaram a cair na água, uma após outra... o bote de borracha virou. Perdi o meu amigo. Comecei a nadar e a me debater contra as ondas do mar. No final, um pescador me salvou e me levou ao hospital, de onde me transferiram para o Campo ”.
Nenhum corpo foi tirado d´água nos últimos dias em Samos. E Yassin, o autor da carta, enquanto isso, partia para Atenas sem que ninguém conhecesse os seus contatos. Ninguém tinha condições, portanto, de dizer se os náufragos foram socorridos pelas autoridades turcas ou se todos se afogaram. O que é certo é que a história é mais que verossímil. Tawfiq está convencido. È um rapaz argelino que vive na ilha grega. Foi ele quem traduziu para mim a carta, escrita em árabe. Não obstante a sua idade jovem, 23 anos, pode dizer-se um veterano entre os harragas , tendo passado a fronteira entre a Turquia e a Grécia por sete vezes. A última vez sozinho. A bordo de uma canoa, armado de remos e de coragem, num trajeto aproximado de duas milhas. Ao seu irmão, Sufien, aconteceu o mesmo. Encontro-o um dia numa praia. Na frente de uma cerveja gelada, conta-me sobre a noite de 2 de maio do ano passado. Nenhum “passeur”. Fizeram tudo sozinhos. Conheciam já o caminho. Ele, um terceiro irmão, dois primos e um amigo. Todos argelinos. Tinham comprado os remos e um bote de borracha de cerca dois metros. Depois de deixarem uma praia perto de Kusadasi, na metade do trajeto, foram parados pela Marinha militar grega. Sufien insiste. A lancha era daquelas cinzas. Os militares se aproximaram do barco de borracha e cortaram com uma faca a câmera de ar, para depois ficaram assistindo os três caírem na água. Felizmente todos sabiam nadar e no curso de cinco horas, esgotados, alcançaram nadando a costa turca. Mas o que aconteceria se um deles não soubesse nadar? Ou se tivesse acontecido com as temperaturas de inverno? O afundamento dos botes de borracha dos migrantes é uma prática corriqueira da Guarda costeira e da Marinha grega, como foi amplamente documentado pela reportagem do Pro Asyl de 2007. Assim como a falta de socorros. Bilal e os outros 23 passageiros do barco de borracha que partiu no 12 de março 2008 esperaram em vão nove horas pela chegada dos socorros gregos. O “passeur” turco em Izmir deu a eles o número da Guarda costeira grega, que chamaram por volta das quatro da madrugada, quando o motor entrou em pane. Na verdade, uma lancha de patrulha se aproximou, mas somente para tirar fotos. Depois se distanciou. Quando o mar ficou bravo, para se salvarem, decidiram então avisar a Guarda costeira turca, por volta das 13:30.
O número de chegada de migrantes e refugiados ao longo das rotas do Egeu está em contínuo aumento nos últimos anos. Em Lesvos, por exemplo, nos cinco primeiros meses de 2008 chegaram 4.320 pessoas contra as 6.370 do inteiro ano de 2007. São, sobretudo, afegãos (3.285 nos primeiros meses de 2007). Mas também iraquianos, curdos, palestinos, somalis, sudaneses, mauritanos, senegaleses, marfineses, nigerianos, argelinos e marroquinos. Os fluxos são mistos: migrantes da economia e refugiados. Para evitar a expulsão parte dos africanos se declara somali. E uma parte dos árabes se diz palestino ou iraquiano. Mas há refugiados de verdade. Basta visitar o velho campo de detenção de Samos para entender isso. È um edifício velho de dois andares, em pleno centro. Foi fechado no fim de novembro de 2007, porem tudo permaneceu como antes em alguns espaços do campo. Os beliches de três camas ainda estão com as cobertas. E o chão está coberto por colchõezinhos de espuma. Os grafites nas paredes contam a história do centro de detenção e as histórias dos refugiados que abrigou. Há retratos de Yasser Arafat e a bandeira da Palestina, há frases de desilusão e declarações de amor à Somália e ao Sudão, como também pedidos de liberdade ao Curdistão.
Domingo, primeiro de junho, foram soltos 35 prisioneiros do novo centro de detenção de Samos. Aproveito, acompanhado por Anna, uma militante da ilha, para subir no navio de linha que os levará para Atenas. Os migrantes sentam na parte aberta do navio. A polícia pagou o bilhete para eles. Foram soltos depois de duas, três semanas, de detenção. Ninguém nas ilhas gregas cumpre mais os três meses de detenção como ocorria até o ano passado. Ninguém, salvo quem apresenta o pedido de asilo. E, na verdade, ninguém o faz. Em 2007, 96% dos pedidos de asilo foram feitos em Atenas. Cada um deles é respondido com uma intimação de saída. Tudo escrito somente em grego. Comunica-se que eles têm um mês para deixar a Grécia. E que è proibido ir para Achaia, a região onde está Patrasso, isto é, a via de saída da Grécia. Nenhum dos migrantes a bordo sabe o que fazer, nem aonde andar, uma vez em Atenas. São abandonados por si sós. Há também um menor de idade, 16 anos, da Guiné. Os outros são quase todos senegaleses e nigerianos, mas se declararam somalis. Na semana passada, num outro navio em Mitilini, o porto de Lesvos, a cena era a mesma. A bordo estava um grupo de aproximadamente vinte afegãos, entre os quais quatro menores não acompanhados e duas mulheres com seus filhos pequenos. A única “chance”, uma vez em Piraeus, o porto de Atenas, é pegar o metrô para Omonia, o quarterão gueto, debaixo da Acrópole.
Na rua Xouthou, atrás de uma vitrine de um bar anônimo de Atenas, está a sede da Associação dos Refugiados Sudaneses. O presidente, Adam Salih, me recebe servindo-me um “chai” . Fugiu de Darfur, e chegou em 2004 na Creta, a bordo de um navio de containers que zarpou da Port Sudan, no Mar Vermelho. Segundo as suas estimativas, em Omonia, vivem pelo menos 450 sudaneses e outros tantos somalis. São todos potencialmente refugiados políticos. Mas, de fato, todos possuem a intimação de saída. Um deles, Abdallah, do grupo de 1972, senhor distinto, camisa branca, óculos de grau e relógio dourado no pulso. Encontro-o pouco depois, no Hotel Maqi, um albergo velho ocupado pelos sudaneses na rua Satovriandou, onde os recém chegados dormem por três euros a noite, em quartos de dez pessoas. Desembarcou em Samos no último 20 de abril. Há dez dias é oficialmente um clandestino. Ninguém os impede de pedir asilo na Grécia. Mas o tempo de espera é em média três ou quatro anos. Nesse período dá para trabalhar, mas, no final, a resposta é quase sempre negativa. Em 2007, diante dos 25.000 pedidos de asilo apresentados, somente 150 receberam o asilo ou a proteção humanitária. Sendo assim, todos querem ir embora. Também porque, talvez, tenham parentes em outros países europeus. Para deixar a Grécia, basta um passaporte falso ou uma viagem, escondidos nos caminhões que saem todos os dias de Patrasso para a Itália. Mas o destino dessas pessoas está preso nas suas impressões digitais.
A convenção de Dublim impõe ao imigrante requerer o asilo no primeiro país aonde se encontra. Pouco importa se, na Grécia, o índice de reconhecimento de asilo é cinqüenta vezes inferior ao da Itália, ou da Suíça. Se as impressões digitais foram pegas na Grécia, na Grécia serão condenados a permanecer. Um sudanês de nome Ali chegou na Noruega e, depois de um ano, foi reenviado para Atenas. O mesmo occorreu a Siad, da Irlanda. Está aqui toda a irracionalidade da política de imigração grega. A Grécia não deseja que fiquem, tanto é que não concede o asilo a ninguém e comete graves ações de expulsão para Turquia no mar. Mas não podem ir embora da Grécia. Tudo isso enquanto no resto dos países europeus os pedidos de asilo caíram pela metade nos últimos anos. E assim aumenta a massa de pessoas sem documentos nem direitos, explorados nas obras em Atenas, como nas colheitas de morangos em Olimpya e naquelas de laranjas em Atra. A Grécia está longe imagem que se faz da Europa. Então, a viagem recomeça. De Patrasso. Em direção obstinada e contrária. Para a Itália.
Mohamed me mostra um dos seus desenhos. Tem um policial que levanta no ar uma faca e um rapazinho com a testa ensangüentada num estacionamento cinza, em frente a um porto. Jaber fez questão de me mostrar o desenho feito dois meses atrás por um dos seis rapazinhos com quem divide a barraca. È uma prova da história que me contou no dia anterior, quando nos conhecemos na barraca de Jemmah. Jaber, 16 anos, assistiu pessoalmente à cena. Estavam fugindo do estacionamento de caminhões, perseguidos pela polícia. Acontece todos os dias em Patrasso. Grupos de dez, quinze adolescentes, pulando a cerca de dois metros de altura, perto do Gate 7, e correndo para a segunda rede de arames farpados que cerca o estacionamento dos caminhões. Para entender se o caminhão vai para Itália – Jemmah me explica – sentem a temperatura dos pneus. Se estão quentes, quer dizer que acabou de chegar de Atenas e que sai no dia seguinte. Escondem-se nas mercadorias ou então vão pendurados no chassis. Antes que chegue a polícia, senão haverá problemas. Jemmah sabe bem. Foi preso dois meses atrás. No Porto. Havia quatro agentes. Um soco e um chute na orelha para imobilizá-lo. Depois, o obrigaram a se debruçar no chão com as mãos abertas, enquanto um outro agente pisava nas suas costas com botas. Então decidiram que iriam se divertir um pouco. Um apertou o gatilho. O tiro não saiu por que tinham tirado as balas antes. No final, depois das pancadas e da execução de brincadeira, perguntaram-lhe quantos anos tinha. Quatorze, respondeu. E o deixaram ir embora. Uma história como tantas outras, a sua. De abusos e de impunidade. De racismo. Mas como é possível que um rapazinho de 14 anos veja uma pistola apontada para a sua cabeça por um policial da Força da Ordem! E como é possível que um rapazinho de quatorze anos morra amassado debaixo de um caminhão, como aconteceu em Forlì, em janeiro, por não existir nenhum outro modo de chegar à Itália.
“A nossa, é uma geração nascida na guerra, crescida na guerra e fugida da guerra. Não conheci nada de diferente desde que nasci, senão a destruição, morte, seqüestros. Perdemos os nossos queridos. Perdemos os nossos direitos. E, mesmo assim, não nos é reconhecida nenhuma proteção. Quantas guerras ainda são necessárias? Quantos mortos ainda são necessários para que se possa ser reconhecido como refugiado político?”. Pergunta em voz alta um dos afegãos que intervém num encontro público organizado pelo movimento antiracista de Patrasso, no último 25 de maio. Alguns ativistas de Tessalonicco chegaram e montaram uma ligação abusiva com o aqueduto para levar água corrente às barracas dos afegãos. Vivem 500 afegãos lá, a cada três, um tem menos de 18 anos. O bairro existe desde 1996. No início tinham só turcos. Algumas barracas têm ligação clandestina de corrente elétrica. A cada noite tentam passar a fronteira. A polícia fica de olho. Mais do que uma habitação de emergência, é um lugar novo de detenção. Um gueto onde centenas de refugiados estão concentrados, vigiados, sem nenhum custo. Sim, porque, mesmo não tendo grades, não se pode sair do terreno. Há carros de polícia por todos os cantos. Corre-se o risco de ser levado ao comissariado, ou mesmo de ser detido três meses nos centros de Evros ou de Atenas. È possível somente escapar dali de noite, tentando fugir dos controles e dos golpes dos agentes da guarda privada das companhias de navegação e dos camioneiros. E esperando não serem admitidos na Grécia, uma vez chegados nos portos italianos. Do contrário, se recomeça tudo do zero: “Morremos a todo momento e continuamos a morrer – conclui o rapaz afegão, quase implorando ao público. Mas somos seres humanos como vocês. Não somos animais. Temos os mesmos sentimentos, como vocês”.
Recomendamos aos políticos italianos e europeus uma visita a Patrasso. Na verdade, o parlamento italiano atualmente se presta a discutir a introdução do crime de clandestinidade e o Governo anuncia que 600 milhões de euros serão necessários para os Centros de Identificação e Expulsão (CIE, que substituirão os atuais Centros de Permanência Temporária, CPT) em cada Região, para o que já foram escolhidos 10 quartéis desativados. Os migrantes sem a permissão de residência poderão ser detidos lá por 18 meses, antecipando assim a vergonhosa diretriz européia sobre a repatriação. È grave o que está acontecendo na Europa da livre circulação. Mas, no fundo, não todos os viajantes pertencem à mesma classe de humanidade. E vale a pena lembrar o começo da estação de verão. Também neste ano dezenas de milhões de turistas desceram nas Canárias, na Andaluzia, nas ilhas gregas, em Malta, na Sicília, acolhidos por sorrisos das hostess e dos garçons. Nessas mesmas rotas, algumas dezenas de mil outros viajantes não-convidados serão, em vez, vigiados pelos nossos navios de guerra, por aviões sem piloto e satélites de espia; por fim, privados da sua liberdade. Nessas mesmas rotas, centenas de homens, mulheres e crianças perdem a vida. Penso nisso cada vez que entro na água. E penso que não seja, de maneira alguma, normal.